Radar Good Surf Good Love #01 – Surf News

Radar Good Surf Good Love #01

Inovações, economia, treino & ondas: o que molda o surf hoje


Abertura Editorial – A Voz da Semana

O surf português vive num paradoxo gritante.
Entre a grandeza das ondas e a pequenez da estrutura, entre o talento que nasce espontâneo e o silêncio cúmplice, sobre matérias importantes, que quase deixa este talento morrer à beira-mar.

É por isso que nasce o Radar Good Surf Good Love: um espaço de curadoria e opinião, onde o surf é pensado com método, ciência e consciência.
Não para agradar, mas para questionar.
Não para repetir o que já se diz e faz, mas para iluminar o que fica nas sombras.

Eu não sou jornalista. Sou professora, treinadora e surfista,  e quero ajudar a ver o outro lado da maré: o que se treina, o que se esconde, o que se vende e o que se perde.


1. Inovação & Economia do Surf – A Era das Piscinas e do Lucro Azul

Nos últimos anos, o surf transformou-se numa economia global de luxo, mas só em algumas dimensões.
A Wavegarden, empresa basca que lidera a indústria de ondas artificiais, soma hoje 12 parques em operação e mais de 40 projetos em desenvolvimento espalhados pelo mundo.
Os investidores chamam-no “o novo golfe”.
Eu chamo-lhe uma revolução a observar com prudência.

Em Portugal, a piscina de Óbidos promete abrir já em 2026.
Dizem que vai atrair turismo, criar emprego e permitir treino técnico em qualquer condição.
Tudo isso pode ser verdade. Mas, como treinadora, vejo também o risco: se o surf passar a ser apenas repetição controlada, perde-se a incerteza, o instinto, a leitura do mar, aquilo que nenhum algoritmo consegue reproduzir.

A piscina pode ser laboratório, mas nunca oceano.
E quanto à sustentabilidade, há perguntas que ainda ninguém respondeu:
Quantos litros de água? Quantos quilowatts por onda?
Quantas árvores valem um tubo perfeito de betão?
Os dados oficiais falam em consumos entre 0,3 e 1 kWh por onda, e em sistemas energeticamente “10 vezes mais eficientes que os pneumáticos tradicionais”.
Mas quantas dessas piscinas são alimentadas por energia renovável? Quantas tratam a água sem químicos?

O progresso sem consciência é só lucro com pranchas.
E sejamos honestos: o surf é praticamente 100 % derivado do petróleo.
Não sejamos hipócritas, é urgente pensar a nossa pegada ao mesmo tempo que romantizamos o progresso.


2. Treino & Ciência – O Corpo como Laboratório

Recentemente, um estudo português (MDPI, 2024) confirmou algo que já aplico há anos no METSIT®: o treino sensorimotor melhora significativamente o equilíbrio, a coordenação e o controlo postural dos surfistas.
Em termos simples: o corpo aprende antes do cérebro entender.

A preparação física e o treino fora de água não são luxo.
É o que separa o praticante do atleta.
É nele que se constroem a consciência corporal, a força funcional, a capacidade de adaptação, o verdadeiro surf invisível.
Quando o corpo é educado para responder ao desequilíbrio, a prancha torna-se uma extensão natural do corpo em movimento.

No METSIT®, o treino é método, e o método é cultura.
Porque ser atleta é ser distinto.
É fazer o que os outros não são capazes de fazer, não por talento, mas por consistência, ética, planeamento, organização sistemática e trabalho.

Mas, para mim, a base da preparação física é primeiro a força e só depois um treino atlético que, honestamente, muito poucos andam a fazer. Há capacidades físicas que são prioritárias, na construção do atleta e no surf, parece haver inversão ou ausência de estágios. Do que observo, muitos surfistas, que nunca construíram uma boa base como atletas, os poucos que ainda treinam fora de água, parecem saltar diretamente para o treino das capacidades coordenativas, sem construir a base, começando pelas capacidades condicionais.
Fala-se em performance, mas ignora-se a longevidade, a prevenção de lesões e o equilíbrio emocional.
Quantos surfistas passam por depressões? Quantos não falam?
Levanto o véu. Vai ser tema aqui no Radar.


3. Política & Estrutura. Feridas Abertas. CAR de Peniche no Radar

Fala-se muito de rendimento, mas pouco de estrutura.
Em 2021, um estudo da Universidade de Coimbra concluiu que o Centro de Alto Rendimento de Peniche está subaproveitado: só abre por reserva, não tem equipa técnica residente e funciona mais como vitrine institucional do que como espaço de treino real.

Isto acontece à beira de Supertubos, uma das melhores ondas do mundo.
É como ter um Ferrari estacionado na garagem e usá-lo para guardar malas de luxo de contrabando.

Não há aqui falta de potencial. Há falta de visão.
O CAR devia ser um coração a bombear conhecimento: equipas técnicas permanentes, projetos de investigação aplicados, programas de performance integrados, partilha entre clubes e treinadores nacionais e internacionais. Verdadeiros treinadores. E não surfistas e pais de surfistas que “treinam atletas”, afirmando de bandeira na mão que não precisam de certificações nem de mais conhecimento, porque o empírico lhes basta.
Assim, continua à deriva, sem programa anual, sem plano estratégico e, acima de tudo, sem alma.

E sim, continuo a perguntar-me: com quem é que podemos contar, quando o talento nacional é tratado como um luxo ocasional e não como património?


4. Cultura & Sociedade – A Ressaca do Herói

Há quinze anos, Andy Irons morreu de overdose. Sem romantizações. Quase nenhuma notícia sobre a sua morte abriu assim.
Esta semana, a Stab Magazine voltou a disponibilizar a sua série documental Andy Irons & The Radicals.
É um pouco doloroso de ver.
Mas devia ser obrigatório para todos nós.

Porque o surf continua a normalizar comportamentos autodestrutivos, como se o talento justificasse tudo.
Em Portugal, o caso de Vasco Ribeiro reabre a ferida: o que é ser ídolo num país que confunde rebeldia com coragem?

Não sou mãe, mas sou professora.
E não queria que os meus alunos vissem o vício, o descontrolo e a falta de responsabilidade como parte natural da vida de um atleta.
Não é.

O verdadeiro atleta é o que resiste à queda antes de precisar de se levantar dela.
Não romantizo recuperações milagrosas nem venero tragédias talentosas.
Admiro quem escolhe todos os dias o trabalho, a disciplina e o método — mesmo quando ninguém vê.
E atenção, disponibilizo-me a qualquer momento para acompanhar ou apoiar a recuperação e reconstrução de qualquer atleta ou pessoa, após uma queda destas. Mas não os levanto em ombros, percebem, marcando bem que é uma fraqueza, não uma força, muito menos razão de pena ou proteção.

O METSIT® nasceu dessa crença: que ser atleta é ser distinto, ético e consciente.
Infelizmente, Portugal continua a promover o talento e a negligenciar o planeamento, assim como a gestão de carreiras, numa perspectiva de longo prazo.
A celebrar vitórias isoladas e a ignorar o trabalho invisível que as torna possíveis.
E, enquanto isso, os melhores continuam a ir embora ou a desistir.

Espero não morrer a perguntar: quando é que isto vai mudar?


5. Reflexão Final

O surf é o espelho de um país inteiro: apaixonado, talentoso, mas cronicamente desorganizado.
Temos ondas de classe mundial e mentalidades de amadorismo funcional.
Precisamos de mais treinadores, professores e gestores que saibam pensar, e menos ídolos que saibam apenas aparecer.

O mar não protege ninguém. Revela tudo.


📣 O debate está aberto. Queremos ouvir o que pensas.

Assinado: Inês Tralha
*Radar Good Surf Good Love — Powered by METSIT®


Fontes

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