Treinar Adultos em Colapso
– O Papel Invisível do Treinador Quando o Cérebro Não Está Pronto para Aprender –
1. Introdução — Ninguém nos ensinou isto
Na universidade ensinaram-nos a programar sessões, a organizar treinos, a aplicar testes motores. Ensinámos crianças. Avaliámos habilidades. Cumprimos objetivos. Fizemos o que se esperava.
Mas ninguém nos preparou para lidar com adultos em colapso emocional disfarçado de motivação, e à procura de si próprios no meio de novas comunidades sociais (disfarçadas de desporto).
Ninguém nos disse que, um dia, o maior desafio não seria técnico, mas humano. Que o verdadeiro bloqueio não estaria no joelho, nem no timing, mas algures entre a amígdala e o orgulho. Que muitas vezes, por trás de uma inscrição ou de uma pergunta, estaria um corpo exausto, uma mente em alarme, um ego magoado — e um coração fechado, que queria aprender… mas não sabia como.
E aqui estamos nós: treinadores, professores, facilitadores de performance e mudança. A dar mais do que recebemos. A escutar mais do que ensinamos. A lidar com silêncios defensivos, com justificações que encobrem medo, com sorrisos nervosos que escondem frustração. E, muitas vezes, sem qualquer ferramenta formal para o fazer.
O que fazer quando o aluno não está disponível para aprender, mesmo tendo pago? Quando a pessoa diz que quer, mas tudo nela grita que não consegue? Quando qualquer proposta é vista como ataque, e qualquer ausência como desilusão?
Este artigo nasce dessa inquietação. Da certeza de que precisamos de uma nova linguagem para treinar adultos. Uma linguagem que junte ciência e sensibilidade, firmeza e compaixão. E que comece, acima de tudo, com uma pergunta: como liderar um processo de aprendizagem quando o sistema nervoso do aluno está em modo de sobrevivência? É desta reflexão de 3 decadas que nasce o METSIT®. O método que não só ensina, ou treina, mas permite a olhos menos treinados avaliar e acompanhar não só crianças, ensinando sobre a vida, enquanto se divertem, mas também fazendo a inclusam não só de adultos antigos praticantes desportivos, mas também daqueles adultos que não conhecem ainda o gesto desportivo, o moviento atlético, ou mesmo o funcionamento humano…
2. A diferença entre ensinar crianças e adultos
Quando ensinamos uma criança, o seu sistema está em expansão. O cérebro ainda não tem as paredes erguidas, nem os alarmes acionados. A criança chega inteira, por vezes agitada, mas disponível. Brinca com o erro. Aprende em movimento. Cai, levanta-se, experimenta de novo. Está em modo de aprendizagem por natureza.
Já o adulto traz bagagem. Histórias. Medos. Orgulho. Culpa. Expectativas. Comparações. Traz um corpo com memórias (ou sem,…) e um ego com defesas. TANTAS! E, muitas vezes, traz tudo isso comprimido num discurso motivado, que diz “quero muito”, mas cujo sistema nervoso está em estado de alerta. O adulto quer, mas resiste. Procura, mas protege-se. Aprende, mas só até onde o medo permite.
A neurociência explica parte deste fenómeno. A neuroplasticidade, embora possível ao longo da vida, é mais lenta e menos espontânea em adultos. O sistema nervoso, já consolidado, precisa de mais segurança, mais repetição, mais contexto emocional positivo para criar novas ligações. E, acima de tudo, precisa de confiança no processo — algo que nem sempre está disponível quando o adulto se sente exposto, julgado ou fora do controlo.
Malcolm Knowles, pioneiro da andragogia (a ciência da educação de adultos), descreve os princípios base da aprendizagem adulta:
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necessidade de saber porquê;
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autonomia no processo;
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respeito pela experiência anterior;
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relevância imediata;
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motivação interna.
Mas tudo isto se desmorona quando o adulto está sob stress. Nessas condições, o cérebro reptiliano toma conta. O córtex pré-frontal, responsável pela lógica, atenção e tomada de decisão, é literalmente desligado quando o corpo se sente em ameaça. E o treinador, em vez de lidar com um aluno, passa a lidar com um sistema nervoso em modo de sobrevivência.
Não é teimosia. É biologia.
Não é falta de vontade. É proteção.
E quem não entende isto, desgasta-se a tentar dar onde o outro não consegue receber.
3. O adulto sob pressão: o que diz a neurociência
O corpo fala antes de qualquer palavra. E no adulto sob pressão, o que o corpo diz é simples: “Não consigo.”
Pode vir disfarçado de exigência, de críticas, de comparações ou até de piadas. Mas por trás, está um sistema biológico que se sente em perigo — mesmo que o contexto seja uma simples aula de surf.
Segundo a teoria da janela de tolerância, desenvolvida por Dan Siegel, o ser humano tem um intervalo interno onde consegue sentir, pensar, agir e aprender de forma regulada. Fora desse intervalo, tudo é demais. O sistema entra em hiperativação (ansiedade, irritação, medo) ou hipoativação (apatia, desligamento, evitação). E nenhum treino é possível ali.
Não se aprende em estado de ameaça.
O stress crónico, tão comum nos adultos de hoje, ativa constantemente o eixo HPA (hipotálamo-pituitária-adrenal), gerando picos de cortisol e deixando a amígdala cerebral — o radar do perigo — hiperativa. Isso significa que o cérebro está em modo de sobrevivência, focado em detetar riscos, e não em absorver nova informação. O córtex pré-frontal, responsável por decisões, empatia e planeamento, fica menos acessível. Resultado?
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O aluno interrompe.
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Justifica-se antes de escutar.
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Reage mal a correções suaves.
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Desiste de propostas antes de experimentar.
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E tantas vezes, nem sabe explicar porquê.
Este estado de constante alarme compromete a neuroplasticidade emocional, o verdadeiro motor da mudança. O adulto não é incapaz — está simplesmente desregulado.
É aqui que o papel do treinador muda de natureza. Mais do que aplicar o plano técnico, é preciso reconhecer os sinais invisíveis de bloqueio: o olhar que evita, o corpo que não ouve, a tensão que sabota a confiança. E ajustar, não em função do ego do treinador, mas da realidade do sistema nervoso à frente.
Aprender é um acto de coragem. E no adulto cansado, essa coragem é uma faísca frágil que se apaga facilmente se o ambiente for percecionado como julgador, acelerado ou invasivo.
4. O treinador como regulador: entre a empatia e o limite
Há dias em que sentimos que deixámos de ser treinadores e passámos a ser âncoras emocionais.
Em que, mais do que planear exercícios ou corrigir técnica, o que nos pedem — ainda que em silêncio — é contenção, presença, paciência, nervo e colo.
Mas não é função do treinador curar ninguém. O nosso papel não é o de terapeuta. Somos reguladores de ambiente, facilitadores de aprendizagem, gestores de energia. E por isso, a nossa presença importa tanto quanto a nossa metodologia.
A teoria polivagal, proposta por Stephen Porges, mostra como o sistema nervoso autónomo se regula através da relação. Quando estamos em contacto com uma figura calma, segura e previsível, o nosso sistema entra em co-regulação: os batimentos cardíacos estabilizam, a respiração abranda, a tensão diminui. O corpo sente-se seguro — e a aprendizagem pode acontecer.
Mas esse processo é bilateral.
O treinador também é corpo. Também sente. Também se afeta.
E se não souber colocar limites, rapidamente passa da empatia ao desgaste, da escuta à exaustão.
Há uma frase que carrego comigo, dita por um dos maiores psicólogos do desporto em Portugal, num momento de partiha sobre o treino de alguns dos meus atletas, e de grande lucidez:
“Um treinador nunca pode querer mais do que o atleta.”
Essa verdade ecoa forte quando estamos perante adultos em resistência. Porque a tentação de salvar, de motivar à força, de mostrar o caminho mesmo quando ninguém quer ver… é real. Mas é também o início do nosso próprio colapso.
Ser treinador de adultos exige escuta ativa sem absorção, proximidade sem fusão, ajuda sem dependência.
É saber dar o suficiente — e depois parar.
É manter o coração aberto, mas o campo limpo.
É compreender que, por vezes, o maior ensinamento está no silêncio firme de quem diz: “Estou aqui, mas não posso fazer por ti.”
5. Quando aprendemos mais com quem ainda não está pronto
Ao longo dos últimos anos, talvez com mais nitidez desde um episódio marcante na minha vida — em que o corpo me ensinou de forma brutal que viver é como treinar — O repouso é crucial, comecei a ver com outros olhos, os alunos que não conseguiam avançar. Não era desinteresse. Nem preguiça. Era algo mais fundo, mais silencioso e, por vezes, mais doloroso.
Foram vários. Em línguas diferentes, com histórias de vida distintas, mas um padrão comum: resistência onde parecia haver motivação, tensão onde deveria haver curiosidade, frustração onde o corpo precisava de paciência.
A história repete-se: pessoas que dizem querer aprender, mas que, perante o menor desafio, fugem, retraem-se ou reagem com crítica. Pessoas que, na verdade, não estão ali para aprender surf — estão a tentar sobreviver à própria vida.
Com o tempo — e com estudo — percebi que estes comportamentos não são coincidência. São descritos pela neurociência, pela psicologia da aprendizagem e até pela pedagogia da andragogia (educação de adultos).
Daniel Goleman chama-lhe hijacking emocional, quando o cérebro emocional toma o controlo. Stephen Porges fala do estado de alarme neurofisiológico, em que o sistema nervoso não se sente seguro para interagir. Dan Siegel descreve a janela de tolerância, que se fecha perante o stress, tornando impossível qualquer adaptação ou aprendizagem significativa.
Malcolm Knowles, ao explicar a andragogia, alerta: o adulto só aprende quando o contexto é relevante, seguro e respeitador da sua experiência. E António Damásio lembra-nos que sem emoção não há decisão, nem aprendizagem duradoura.
Hoje, mais alerta, dou o melhor de mim com mais lucidez. Estudo os casos com mais distância. Pratico uma escuta ativa mais refinada — mesmo quando os assuntos não são ditos. Leio o corpo. O tom. A fuga. E, acima de tudo, aprendi a proteger o grupo e a minha própria integridade como treinadora.
Porque por vezes, a pessoa mais difícil da aula não é um problema a resolver — é um reflexo da dor que ainda não pode ser tocada.
E o melhor que posso fazer… é não a agravar.
6. O novo treinador do século XXI
Durante muito tempo, acreditámos que o treinador ideal era o mais técnico, o mais forte, o mais respeitado pela sua performance, pekos seus próprios resultados desportivos. Mas os tempos mudaram. As pessoas mudaram. E hoje, o verdadeiro desafio já não está apenas em ensinar a técnica — está em criar as condições internas e externas para que alguém a consiga aprender. Crianças e Adultos. E Crianças e Adultos com muita e com zero experiência desportiva. O espectrum é enorme. Como tal também, enorme tem de ser o estudo ao longo das suas carreiras!
O treinador do século XXI precisa de muito mais do que saber fazer.
Precisa de ler pessoas, contextos, estados emocionais.
Precisa de conhecer o sistema nervoso, de dominar a arte da pausa, de reconhecer o momento de ajustar, recuar, esperar ou intervir.
Precisa de saber regular-se a si próprio, para depois poder ajudar o outro a regular-se.
Precisa de liderar com exigência, mas com presença.
De criar um campo de treino com rigor, mas sem violência.
De perceber que cada aluno/praticante traz consigo um passado — e que muitas vezes é esse passado que o bloqueia no presente.
É preciso formação contínua, inteligência emocional, conhecimento científico e sobretudo, consciência.
Consciência de que nem todos estão prontos.
Consciência de que o nosso papel é dar o melhor… mas nunca dar-nos por inteiro.
Consciência de que há momentos em que o maior acto de profissionalismo é saber parar.
Porque quem forma pessoas, formata também o futuro. E se não soubermos cuidar do processo, acabamos a carregar dores que não nos pertencem, tentando salvar quem ainda não quer ser salvo.
O treinador do século XXI é, acima de tudo, alguém que sabe que ensinar é um acto humano. E que ser humano — inteiro, lúcido e limpo — é a base de qualquer grande treinador.
Epílogo — Quando não se ensina, cuida-se. Quando não se treina, recomeça-se.
É por tudo isto que criei o O Programa Reset Oceânico – UMA PAUSA ESTRATÉGICA.
Porque percebi que há pessoas que não precisam de mais estímulo, nem de mais exigência — precisam de um espaço seguro para voltar a sentir.
Pessoas que estão demasiado longe de si mesmas para conseguirem aprender o que for.
E antes de uma técnica, antes de uma prancha, antes de um objetivo… precisam de respirar.
De dormir melhor.
De comer com presença.
De se mover com gentileza.
De se reencontrar dentro do seu próprio corpo.
De voltar a confiar.
O Reset Oceânico – UMA PAUSA ESTRATÉGICA, não é um programa de surf. É uma reprogramação do sistema humano. É um ponto de partida para quem já não consegue “aguentar mais”, mas sabe que ainda não chegou ao fim.
É ali que voltamos ao essencial — à água, ao sol, ao sono, à força, ao toque do vento e do silêncio.
E quando o Reset cumpre o seu papel, alguns desses adultos reencontram o desejo de pertencer. De crescer com outros. De praticar, treinar e viver com mais verdade.
É aí que surge também o Life Culture Social Club — o espaço para quem quer cultivar saúde, amizade, presença e movimento consciente. Um clube privado mas inclusivo, onde se pratica a vida com intenção, longe dos excessos e perto da essência.
Porque sim, o surf pode mudar vidas.
Mas só quando o corpo já não está em alarme.
Só quando o treinador não está em exaustão.
Só quando existe um lugar onde treinar é cuidar — e cuidar é o começo de tudo.